fotos: Jorge Silva
No mais infantil dos impulsos, ignoro a pilha de livros comprados recentemente e a escassez do meu orçamento e entro na livraria. Ando de um lado para o outro sem saber com segurança o que estou fazendo ali. Alguns minutos se passam, imagino, e logo pesco um volume da prateleira. Abro na página sete e a mente acompanha o primeiro parágrafo. Uma cadeia de artifícios e expressões denuncia um mecanismo que necessita de alguém para fazê-lo funcionar. O registro da realidade é abandonado. Leio, sem preocupação de recriar um mundo verossímil: “A professora Emanuela explicou à classe como é um urso, como os peixes respiram e que sons a hiena produz à noite. Ela também pendurou na sala gravuras de animais e aves. Quase todos os alunos debocharam dela, porque nunca na vida tinham visto um animal sequer. E muitos deles não acreditaram que existissem no mundo tais criaturas. Pelo menos nas redondezas”.
Algo de sinistro emana da experiência com a superfície das palavras. O suspense se instala rapidamente em algum lugar do córtex pré-frontal. As mãos, como se tomadas de vontade própria, comemoram uma independência louca fechando o livro e interrompendo bruscamente minha leitura. O pensamento detém-se num intervalo. O branco da capa parece fugidio. Detenho-me nos arabescos coloridos e na árvore desenhada no centro. Algo estranho me habita. Um pouco indecisa, percorro o espaço do título De Repente, nas Profundezas do Bosque. A capacidade ocular reconhece as palavras, mas um movimento estranho me desampara como sujeito que vê.
Tento me refugiar no nome do autor: Amós Oz. Como nada acontece reabro o volume, agora na página 22: “A aldeia era cinzenta e triste. À volta dela apenas montes e bosques, nuvens e vento. Não havia outras aldeias nas redondezas. Quase nunca chegavam forasteiros, nem sequer visitantes ocasionais”. Deslizo incontente até a página 23. Quero entender aquele espaço imaginário onde, durante a noite, todos se trancam em suas casas com medo do escuro e das coisas que o acompanham. “Escuridão e silêncio arrastavam-se do fundo dos bosques e pairavam, oprimindo as casas fechadas e os jardins abandonados. Blocos de sombra estremeciam nos caminhos[…]Tudo isso porque a noite um grande medo tomava conta da aldeia. Noite após noite, todo o espaço exterior pertencia a Nehi, o demônio da montanha”.
Devo buscar as instruções morais que normalmente sustentam histórias fabulares como essa? As regras básicas que remontam a Esopo serão realmente seguidas pelo autor?
Submersa na idéia criada pelas artimanhas do livro, percorro a aldeia tediosa e triste onde a referência aos não humanos é apenas imaginária. Tenho medo de embarcar em uma aventura maniqueísta, dividida entre branco ou preto, apenas. Mas como fugir se também sou fruto de um ambiente onde se consome massivamente a cultura de “bandidos” e “mocinhos”, saídos dos filmes de faroeste? Esforço-me e penso no que se descortina para além da dicotomia e do conflito entre bem e mal. Parece que há uma luta, mas o vilão e o herói não se revelaram claramente na narrativa. Afinal, quem é Nehi num mundo onde nada garante uma bondade ou uma maldade em si? Quando nada é anterior aos misteriosos conflitos de interesses?
No universo criado por Oz, ao contrário do que normalmente acontece nas fábulas, os animais não falam. Não falam simplesmente porque decidiram sair de cena. Essa ausência põe em jogo minhas opiniões sobre coisas estranhas como a sociedade e as leis da história, causa desconforto e me preenche de questionamentos sobre minhas relações com os animais: os que são comidos, os explorados, os que sofrem nas ruas…
O que Esopo pensaria disso?
Decido continuar pescando partes aleatórias do texto. O método anárquico de leitura demanda uma participação exaustiva. Não sou um leitor modelo, claro. Deixo-me livre para esquecer as regras e usar o texto como um recipiente para as inquietações que são despertadas no ritual do deciframento. Assim, nada se perfura demais. Abro um campo de (in) sensatez nesse turbilhão condicional de fluxo contínuo. Ambiciono devolver à escrita o seu devir…
Nos interstícios abertos, as palavras fazem incessantemente sentido, mas é sempre para evaporar. Preenchida de dores e sentimento de culpa investigo se não seria mais seguro virar as costas e fugir desse mundo onde às crianças é ensinado que todos os animais foram para o bosque, local proibido, habitat do misterioso demônio. Antes do desânimo total percebo, na página 39, que um menino e uma menina desafiaram a proibição: “De todas as crianças da aldeia, apenas duas, Maia e Mati, sentiam uma baita atração dos bosques sombrios. […],ficaram fascinados e a imaginação os seduziu a tentar descobrir o que estava escondido nas profundezas do bosque”
Sem saber explicar porque, lembro de George Orwell. Sinto como se tivesse em mãos uma “Revolução dos Bichos” às avessas onde dois pequenos humanos, revoltados contra o status quo, inconformados com a mal contada história sobre os animais e sobre o bosque, desafiam as proibições e entram na floresta. Somente quem deixa o pré-estabelecido e encara o medo está apto a conhecer o novo, penso.
No interior do isolamento redescubro formas de pensar as coisas. A atendente da livraria esbarra em mim. Ou talvez fui eu quem esbarrou nela. Digo apenas “não obrigada”, mesmo sem entender a pergunta, mesmo sem saber se realmente houve uma pergunta ou apenas um resvalo corporal. Volto a prestar atenção no livro. O desconforto aumenta. A estranha conexão travada se adensa. Invento hipóteses sobre a “intenção do texto”. Testo-as.
Penso na convivência com o outro, na integração do homem com a natureza, na discriminação e intolerância… O referencial central da história são as relações? As relações entre adultos e crianças, entre humanos e animais, entre humanos de um modo geral; relações assimétricas, relações de diferença, de indiferença, de incompreensões e desprezo? A difícil convivência com o outro, as relações com a alteridade são o foco das metáforas desenvolvidas por Oz?
Mas, e como resistir a tudo isso, indago folheando e sorvendo a textura porosa das páginas.
E assim, disse Maia depois de refletir sobre esse pensamento, e assim no fundo é possível dizer que todos nós sem exceção estamos no mesmo barco: não apenas todas as crianças, não apenas toda a aldeia, não apenas todas as pessoas, mas todos os seres vivos. Todos nós. E ainda não sei bem dizer se as plantas são um pouco nossos parentes distantes. Logo, disse Mati, quem debocha dos outros passageiros na realidade é um bobo que está no mesmo barco. E não existe aqui nenhum outro barco.
Quero chamar a vendedora e pedir desculpas pela minha grosseria, mas quando percebo já estou divagando sobre como conseguem esses homens viver ouvindo apenas os sons de suas próprias vozes, de seus próprios passos. Onde fica o canto dos pássaros, o zumbido dos insetos, o companheirismo dos cachorros e gatos?
Ao invés de se preencherem, os espaços em branco multiplicam-se. Me inquieto diante do mundo. Procuro, no emaranhado de caminho previamente traçados que é a existência, um desvio de perspectiva. Na mais profunda solidão de quem aceita o dilema, entro nas profundezas do bosque e questiono o valor da resistência à opressão e do pensamento independente. Tudo aparece matizado pela discriminação que emana de um mundo intolerante. Avanço até a página 54. O texto parece repleto de inconformismo e engajamento. Quero ir além, apreender o que o texto não diz. “Será que o deboche é uma forma de defesa para quem lança mão dele, pois protege do perigo da solidão? Pois quem zomba não zomba em grupo, e aquele que desperta a zombaria não fica sempre sozinho?
Olho para os lados, mas não vejo nada. Avanço mais algumas linhas, alguns parágrafos. As letras se confundem. Respiro fundo. Sinto como se tivesse voltado à superfície depois de um prolongado mergulho. Será que esse é realmente um livro para crianças? E se criança for uma delimitação moral e não etária? Dou uma olhada na contracapa, só para garantir, “De Repente, nas Profundezas do Bosque é uma fábula estranha e encantadora sobre a importância da inadependência de espírito como antídoto à intolerância e ao obscurantismo. Uma fábula, para todas as idades”.
Fico olhando o nada calmamente. Caminho em direção à porta de saída tentanto lembrar de tudo o que eu acabei de ler. Só uma frase, pescada da página 102, martela incessantemente a minha memória: E não tenha medo, Mati, da escuridão que está se aproximando; hoje o escuro vai atrasar, para que possamos continuar conversando.
Melanie Peter